A foto, em preto e branco, mostra Edmundo em cima de um palco com pouca iluminação, arrumando os equipamentos antes de um show na Casa Matriz. Edmundo é um homem branco, com cabelos grisalhos na altura do ombro. Ele veste camisa de manga curta e manga comprida.

CALABOUÇO

Um espaço livre na periferia de BH.

TEXTO
Jéssica de Almeida e Leo Bryan
FOTOS
Flávio Charchar

Era um fim de tarde de domingo. Quem caminhava pela rua Badaró Júnior, no bairro Primeiro de Maio, podia ouvir de longe o burburinho que se formava em frente ao Bar do Betão. O som das cordas já se misturava à efusão das vozes de velhos amigos, que ali se reuniam para um encontro muito esperado: uma noite com Wilson Amolondé, Fábio Loyola, Gerson Januário, Márcio Granato, Sérgio Villard, Biné Zimmer e muitos outros. Rostos que há tempos não se viam e que estavam juntos novamente por um motivo: relembrar e homenagear os tempos do Bar Calabouço, que marcou época na Regional Norte de Belo Horizonte.

“Venham recordar os bons momentos e escutar a melhor música, sua presença é muito importante, pois a verdadeira amizade mora do lado esquerdo do peito”, diziam as letras impressas no panfleto que convidava a comunidade para o show do dia 9 de abril de 2017. O organizador do evento era Toninho, garçom que, durante quase duas décadas, serviu tira-gostos e bebidas no espaço da rua Américo Martins da Costa, número 15. Um ponto de encontro que, hoje, existe apenas na lembrança de quem o frequentou.

“Este lugar deveria se tornar uma praça, e uma sugestão é ‘praça Calabouço’”, propõe Moisés Cruz, 63 anos. Apressa-se para continuar: “ou praça da Cultura, ou largo do Calabouço”. O senhor, de cabelo grisalho e barba aparada, levanta um dos braços e aponta para uma esquina. Hoje em dia não há nada de mais nela, apenas um grande degrau de concreto, um pé de manga e o paredão lateral de uma drogaria. Mas as referências dele para imaginar uma praça ali remontam ao início dos anos 1980, quando parte do terreno da família Correa se transformou no espaço que abrigou o principal palco da região.

A foto mostra uma casa antiga com uma varanda onde estao diversas mesas e cadeiras, além de lustres roxos. Em frente a esta casa, tem um fusca branco que aparece só pela metade. Nessa casa funcionava o antigo Bar Calabouço.

O Bar Calabouço surge como anexo à residência dos irmãos Marcos e Edmundo Correa.

O bairro Primeiro de Maio e os centros de cultura

Conhecido no passado pelo nome de Vila Operária, o bairro Primeiro de Maio teve sua ocupação desencadeada pela inauguração do Matadouro Modelo, em 1937, para atender ao crescente consumo de carnes da população da capital. A partir da década seguinte, com a regularização dos primeiros lotes e na esperança de acesso a empregos, novas famílias se instalaram na região próxima ao Ribeirão do Onça – dentre elas, a do comerciante Miguel Correa, que, anos mais tarde, abriria ali sua mercearia. Após se casar com Terezinha Oliveira, Miguel e sua esposa têm cinco filhos: Marcos, Nilma, Nilde, Edmundo e Ronilda, que “nascem na Vila Operária, mas crescem no Primeiro de Maio”, conta Edmundo Correa. Isso porque, em 1967, o bairro recebe sua denominação atual, em provável homenagem ao Dia do Trabalhador.

Rico em manifestações artísticas, o bairro Primeiro de Maio reflete, no início dos anos 1980, a efervescência cultural e política que culmina no movimento Diretas Já e na eleição, em 15 de novembro de 1986, de parlamentares para elaboração da Constituição Cidadã. Havia no ar um grande clamor por democracia, e esse clamor alcançou muitos dos jovens da região, que começaram a se organizar.

Edmundo relembra que, já no final dos anos 1970, em uma pequena sala cedida pela Igreja de Santo Antônio, funcionava um centro cultural: “foi o início de tudo”, afirma. Presidido pelo jornalista Júlio Gomes e frequentado por vários artistas do bairro, como Roosevelt Loyola e os integrantes do grupo Anonimato, os jovens fundaram um cineclube voltado à comunidade da região. Os filmes eram transmitidos por meio de um projetor emprestado pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (Face-UFMG), ora em praça pública, ora dentro da própria Igreja, que também se transformava em um espaço de debates após as sessões. Foram exibidos, à época, diversos clássicos do Cinema Novo, como os filmes de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade. Como muitos dos títulos eram proibidos, “era comum que a polícia invadisse o local e apreendesse o equipamento, que, por ser um bem de uso público, acabava sendo devolvido à universidade”. “Aí o cineclube voltava a se reunir”, diz Edmundo com um sorriso.

A imagem mostra um flyer digitalizado. O fundo do flyer é branco com escritos em preto. Em destaque, o nome “Tunai”, em letras maiúsculas. Em baixo, com pouco destaque, os dizeres: “trabalhos com Gal, Fagner entre outros. No lado esquerdo, o nome “ Calabouço”. No centro da imagem, a imagem de um homem com cabelos longos com um violão nas mãos. Na parte inferior, a data de 17 de agosto (sábado).

Com a dissolução do centro de cultura e do cineclube da Igreja de Santo Antônio, seus frequentadores voltaram a se encontrar, poucos anos mais tarde, com o surgimento do Bar Refazenda, novo espaço de convívio da região no início dos anos 1980. Foi em uma de suas mesas que Sônia Soares, Kinkas Januário e Marcos Correia decidiram organizar a Feira de Cultura do Bairro Primeiro de Maio. O evento, que se estendeu por três dias e contou com exibições de música e artes plásticas, reuniu quase dez mil pessoas, tornando-se anual. O sucesso atingido, para Edmundo Correia, “foi o ponto de partida para a criação de um espaço para a comunidade continuar se encontrando e discutindo política”. Foi assim que os irmãos Marcos e Edmundo criaram, em 1983 – em uma parte do terreno que abrigava o comércio e a própria habitação da família de seu Miguel Correa –, o Centro de Cultura Popular Primeiro de Maio.

Um Calabouço em família

O espaço se transformou em casa de shows dois anos depois, quando um microfone doado por Dênio Rodrigues foi conectado a um sistema de som doméstico, em um palco improvisado para receber o cantor e compositor Matusalém Vieira – primeiro artista a se apresentar no local. Nasce, assim, o Espaço Cultural Calabouço, também conhecido como Bar Calabouço.

A foto antiga mostra Sônia Soares e Patrus Ananias bem no centro. Patrus é um homem branco, com cabelos e barba escuros. Ele usa óculos, uma camisa social azul clara e calça social bege. Sônia é uma mulher branca, de cabelos curtos e escuros. Ela vez uma camisa vermelha, calça jeans e tênis. Eles posam em frente a uma parede pixada com as palavras “música” e “poesia”.

Sônia Soares e Patrua Ananias, então prefeito de Belo Horizonte.

No Calabouço, acrescenta Edmundo, “tudo funcionava em família”. Marcos cuidava da divulgação, enquanto Edmundo era responsável pela curadoria dos artistas e pela montagem da agenda. Dona Terezinha, mãe dos dois irmãos, comandava a cozinha. Parte considerável do cardápio ali servido era preparada com peixes frescos: piratingas e surubins trazidos por seu Miguel diretamente do bairro Lagoinha. Dos pratos e bebidas vendidos, “a família tirava a renda que permitia que o espaço permanecesse aberto, já que o valor das entradas era integralmente repassado aos artistas”. Além do garçom Toninho, a família contratou também Pedro, ajudante de cozinha. Mário era quem cuidava da segurança. A ligação com a comunidade do bairro Primeiro de Maio se estreitava a cada ano. Cesário Palhares, Frank de Paula e Paulo Nogueira, parceiros de projetos que envolviam história e literatura, são citados como colaboradores importantes nesse período. Além do entrevistado Moisés, que trabalhou como pedreiro, “Catito, Pascoal e Dilermando, todos artistas da região, ofereceram valiosa ajuda nas reformas e transformações pelas quais o espaço passou ao longo dos anos”, recorda Edmundo. O artista plástico Almir Lima também é lembrado. “Foi ele quem esculpiu, em metal, um violão de duzentos quilos que foi fixado à entrada do estabelecimento”.

“O Calabouço aposta na democratização da arte, pois tanto leva para a periferia os espetáculos comumente apresentados na Zona Sul e circuito central dos bares, como impulsiona os bons trabalhos de artistas locais”, escreve Marcos Correa em um panfleto comemorativo dos 12 anos do bar, datado de 1995. O Calabouço recebeu reuniões de jovens contra a ditadura militar, abrigou saraus, teatro e exposições. Foi palco de apresentações de MPB,jazz, rap, rock e expressões diversas. Passaram por lá artistas da região, como Gil Damata, Gerson Januário, Wilson Amolondé e Paulo Andrade, além de vários nomes de expressão, como Toninho Horta, Titane, Markú Ribas, Chico César, Tunai, Mônica Dalmázio, Régis D’Almeida, Zeca Baleiro, Maurício Tizumba, Chico Lobo, Marco Holanda, Gilvan de Oliveira, Cláudio Nucci, Juarez Moreira, Bauxita, Celso Adolfo, Tianastácia, Edvaldo Santana, Guilherme Bizzoto, Alexandre Araújo, Tadeu Franco, Selma Carvalho, Alda Resende, Eminence, Zippados, Paulo Lepetit, Chico Amaral, Luiz Waak, Ricardo Farias, Rita Silva, Helena Pena, Haroldo Alves e tantos outros. O Grupo Galpão e o Teatro Oficina também marcaram presença no local.

Em 30 de maio de 1996, o Espaço Cultural Calabouço teve sua importância reconhecida pelo Município de Belo Horizonte com a entrega do diploma de “Mérito Artístico Rômulo Paes” – a mesma honraria concedida, três anos depois, ao Clube da Esquina.

A imagem mostra dois flyers antigos do Calabouço que convidavam para os <i>shows</i> da Primavera de Uivos e do Chico Lobo.

Teresita Fernandez, importante referência da canção cubana, também subiu ao palco do Calabouço. Ernesto Cardenal, poeta e teólogo da Nicarágua candidato ao prêmio Nobel de Literatura, é outra figura internacional que, por intermediação de José de Alencar (o “Zé Feijão”), um morador local, participou de debates no espaço do bairro Primeiro de Maio.

Roger Deff, MC, jornalista e pesquisador, lembra que o Calabouço recebia shows de vários segmentos. “Era gente ligada à cena rock, soul music... e era democrático o suficiente para receber o pessoal do rap também”, diz. Tanto que, em 1996, a premiação Melhores do Rap teve o bar como origem. “Foi nessa premiação que conheci o Calabouço. Cheguei lá garoto, pegava dois ônibus, era um para o Centro e do Centro para o Primeiro de Maio, levava um par de toca-discos”, relata, saudoso. “O rap me surpreendeu”, recorda Edmundo. Isso porque, no início dos anos 1990, o movimento hip hop em BH começava a ganhar algum destaque e ele não conhecia muitos artistas do gênero. Para Deff, o espaço foi um dos primeiros a abrir as portas para o estilo quando outras casas e produtores ainda olhavam-no com desconfiança. Os próprios MCs começaram a bater na porta do Calabouço para tentar agendar um show. Dali em diante, a parceria deu certo, até montaram uma programação própria de rap: o Calabouço Rap Festival, com nomes como Processo Hip-Hop e Ideologia Negra. Conta Edmundo que os eventos de rap e hip hop aconteciam, por tradição, aos domingos: “O primeiro grupo de rap a se apresentar no Calabouço foi o Divisão de Apoio. A Black Soul tocou depois. Foi um dos conjuntos mais importantes dessa época e até hoje segue influenciando outros artistas”.

Também havia atividades para crianças: o Calabouço Infantil, ou “Encontrinho”. Era Sônia Soares quem ficava à frente da organização. O convite à comunidade era feito de casa em casa. Ruas do bairro deixavam de dar passagem aos carros para receber a montagem do sistema de som e de toda uma estrutura para teatro e exposições de bonecos. “O evento contava, ainda, com distribuição gratuita de material educativo”, acrescenta Edmundo. Os brinquedos eram doados por Leopoldo Santana.

Um dos momentos que valeram a pena serem vividos por Edmundo no Calabouço foi o show “É Folia de Reis”, com Chico Lobo, Maurício Tizumba e Gil Damata, em 18 de janeiro de 1997. “Gil da Mata e Chico Lobo estavam no palco quando Tizumba chegou com centenas de pessoas subindo o morro. Ele próprio foi a Folia de Reis”. O festejo, vale destacar, é tradição no bairro Primeiro de Maio desde 1946.

Os eventos eram divulgados pelas tecnologias da época: distribuição de panfletos com diagramação simples, faixas fixadas na porta e o boca a boca. Um convite estampado por três homens barbudos anuncia a Primavera de Uivos. “Uma jam session de poesia com Rodrigo Leste e convidados numa homenagem especial e póstuma ao poeta beat Allen Ginsberg”, promete o documento, cujo ano não é possível precisar. Em uma fotografia, também sem registro do ano, uma faixa na entrada do Calabouço convida para um show de música instrumental, jazz e blues numa sexta, 12 de julho. Um detalhe chama a atenção pelo cuidado: no cantinho de cada panfleto, com letras pequenas, liam-se os números das linhas de ônibus que levariam o público ao endereço dos shows – 1502A, 1510 e 5508, esta última extinta em 2014, com a inauguração do Sistema Move.

A foto mostra o interior do Bar Calabouço, do ponto de vista do palco. Em primeiro plano, as costas do músico que se apresenta. Ao fundo, diversas pessoas sentadas em mesas e cadeiras de ferro amarelas.

Noite de música ao vivo no Calabouço.

Nome que sempre será lembrado pela comunidade que viveu os primeiros anos do Calabouço, o artista João do Carmo foi responsável – até seu prematuro falecimento – pela arte dos panfletos que circulavam de mão em mão. Sua morte foi motivo de grande comoção entre os frequentadores do espaço. Em 30 de maio de 1996, o Espaço Cultural Calabouço teve sua importância reconhecida pelo Município de Belo Horizonte com a entrega do diploma de “Mérito Artístico Rômulo Paes” – a mesma honraria concedida, três anos depois, ao Clube da Esquina. A cerimônia foi realizada na Câmara Municipal de Belo Horizonte.

Os irmãos Marcos e Edmundo Correa escolheram o nome Calabouço em homenagem ao estudante Edson Luiz, morto por militares em 1968, ano em que foi baixado o Ato Institucional n. 5 (AI-5), responsável pelo período mais tenebroso da ditadura militar. O jovem foi assassinado no Bar Calabouço, no centro do Rio de Janeiro, evento que causou uma série de protestos. O episódio acabou também virando canção na voz de Sérgio Ricardo: “Calabouço” é a faixa que abre o disco lançado em 1973 com os músicos Piri, Fred, Cássio, Franklin e Paulinho de Camafeu. Em alusão à censura e à repressão do período, os versos do cantor são entrecortados por um sombrio comando, que aos poucos se transforma em coro: “Cala a boca, moço!”. Conta Edmundo que, mesmo sem saber que o título continha referência ao crime cometido pelos militares, se emocionou ao ouvir a música pela primeira vez. “A canção foi também uma influência na escolha do nome”, acrescenta.

Calabouço: uma lembrança

Nasci e cresci no Tupi, bairro vizinho ao Primeiro de Maio, separados por uma distância de cerca de dez minutos de bicicleta. Eles se parecem: ambos são formados por pequenos comércios, ruas estreitas, casas simples e muita gente na rua. Minha família se instalou ali acreditando ser “diferente” do perfil médio dos moradores, que era de baixa renda. Também éramos, mas havia um grande esforço por parte dos meus parentes para acreditarmos que não. Talvez por isso eu não tenha frequentado o Primeiro de Maio, porque também não frequentei bem meu próprio Tupi. Era fortemente desencorajada a ter contato com “esse pessoal”, mesmo sendo parte daquele pessoal. Assim, só ouvi sobre o Calabouço quando me tornei adulta e o conheci como um embrião da casa de shows Matriz, localizada no Edifício JK, no bairro Santo Agostinho.

Discordo, pois, colocado dessa forma, o Calabouço seria o estágio inicial de algo a evoluir, quando na verdade ele era um espaço suficiente e estabelecido. Não há nada mais evoluído do que um estabelecimento periférico se tornar uma das referências culturais da cidade e deixar tanta saudade para a comunidade próxima.

Durante a apuração, foi difícil conhecer um morador do Primeiro de Maio que não tenha lembrado do bar com carinho. O garçom Maurício Maumau frequentava o Calabouço com os tios. A fisioterapeuta Nayara Assis tem uma foto lá, com dois anos, bebendo refrigerante. O baterista Renato Machado tem fotos e vídeos de quando se apresentou lá em 1997, com a banda Quintessência. A cabeleireira Gisleida Correia não chegou a entrar lá, mas fazê-lo era um sonho. “Só via pela janela quando ia no ferro-velho vender lata de óleo. O Calabouço acabou e eu não tive esse prazer”, lamenta.

Não há nada mais evoluído do que um estabelecimento periférico se tornar uma das referências culturais da cidade e deixar tanta saudade para a comunidade próxima.

A foto mostra pessoas reunidas em voz de Ernesto Cadernal, um homem branco com cabelos e barba brancas, vestindo um camisa branca e um chapéu preto. Ele está sentado de frente a uma mesa com toalha vermelha e garrafas de cerveja em cima.

Numa noite quente de janeiro, Moisés Cruz recebeu a reportagem da Perambula em casa. Mostrou sua última foto do Calabouço, já desativado, antes de ser transformado em drogaria. Na imagem, há resíduos deixados na porta, janelas de madeira, um pequeno portão de aço e uma fachada coberta de pedras. Em outra fotografia, de uma fase anterior, em vez de pedras, eram plantas pendentes, como jiboias, formando um grande paredão verde naquela esquina.

Noutro tempo e em quase toda a história do espaço, contudo, ele se pareceu com uma casa comum com varanda na frente, protegida por telhas de barro. O pé de manga, que hoje orna a esquina, também aparece nas fotos. Por dentro, paredes metade brancas e metade verde-escuras, salpicadas de quadros de arte abstrata. Cadeiras de metal se misturam com cadeiras de plástico, mesas de plástico se misturam com mesas de madeira. Perto do teto, um sistema de iluminação sofisticado para a época. Em todas as imagens há jovens rindo, conversando, se abraçando, bebendo cerveja. Moisés tem fotos do Calabouço do primeiro ao último dia – quando foi parcialmente demolido para dar lugar à Drogaria São Felix. Talvez por isso ele fale do espaço com tanto orgulho e tenha se emocionado tantas vezes durante a entrevista.

Zeca Baleiro, num depoimento publicado no YouTube, define o bar como um centro catalisador da cultura e da arte. “Me apresentei nesse bar e vi shows interessantíssimos lá”, gravou. Moisés foi quem mostrou o vídeo à reportagem da Perambula e contou que, em sua opinião, a melhor fase do Calabouço foi de 1986 a 1990, período em que Baleiro viveu no Primeiro de Maio. “Foi quando esse cara e o Calabouço começaram a bombar, mas a verdade é que o tempo todo foi de efervescência”.

Butecário, Matriz e os anos seguintes

Em 1996, paralelamente às atividades do Calabouço, é fundado o Butecário. O espaço abriu suas portas no Sindicato dos Bancários, no Centro de Belo Horizonte, e manteve suas atividades até o ano 2000. Recebeu nomes de peso como Racionais MC's, MV Bill e Marcelo D2. Edmundo conta que o Sindicato tinha um departamento cultural forte, formado por frequentadores do espaço no bairro Primeiro de Maio. “Já achava que meu papel [no Calabouço] estava cumprido e queria conhecer novas pessoas e espaços”, narra, até que recebeu do Sindicato o convite para gerir o boteco dos bancários (“por isso o nome, né?”). Seu irmão Marcos continuou à frente do Calabouço até 2003, quando o estabelecimento da rua Américo Martins da Costa fechou definitivamente suas portas, após completar 20 anos de atividades.

De 2000 em diante, Edmundo passou a se dedicar à Matriz. Para isso, vendeu tudo o que tinha e somou com o que Andrea Diniz, sua esposa, ganhou de indenização ao largar o emprego. Não só fundaram a Matriz como se tornaram ícones da cena underground de BH.

No dia 4 de abril daquele ano, o jornal O Tempo trouxe no caderno de entretenimento: “BH ganha novo espaço para shows: Matriz será inaugurada hoje no Terminal Turístico JK, com espaço para vídeos, música e exposição de arte”.

A foto mostra a parte extern da Casa Matriz. Em primeiro plano, Edmundo e Andrea. Edmundo é um homem branco, com cabelos grisalhos, vestindo uma camisa xadrez por cima de uma blusa branca e calça preta. Andrea é uma mulher branca, de cabelos loiros e compridos, vestindo uma blusa preta de mangas longas e uma calça vermelha. Ao fundo, um mural pintado na parede mostra diversas pessoas, girassóis, e a frase “povo no poder”.

Edmundo e Andrea. Ao fundo, o painel do artista Drin Côrtes.

No dia 4 de abril daquele ano, o jornal O Tempo trouxe no caderno de entretenimento: “BH ganha novo espaço para shows: Matriz será inaugurada hoje no Terminal Turístico JK, com espaço para vídeos, música e exposição de arte”. O local foi concebido com características comuns em casas de show contemporâneas, mas raras nos anos 2000, como a adoção de opções vegetarianas e veganas no cardápio e espaços para exibir clipes e filmes, além de abrigar exposições artísticas. De lá para cá, recebeu shows de MPB, música eletrônica, rock, apresentações de dança, teatro e comédia stand-up.

Foi na Matriz que eu assisti ao meu primeiro show, um festival de bandas cover, em 2005, em que eu poderia cantar músicas do The Used e do Dance of Days, mesmo que tocadas por meninos com a mesma idade que eu. Tinha 13 anos e minha mãe precisava entrar comigo. Foi a primeira vez que falei com a Andrea, com quem tive conversas muito gentis todas as vezes em que voltei, da minha adolescência à fase adulta. Os melhores shows de que consigo me lembrar também foram na Matriz. Estiveram lá Bane, Envydust, Noção de Nada, Zander, Possuídos, Dilúvio, Bertha Lutz, Hateen, Gloria, entre outras tantas. Uma das experiências mais marcantes dos meus quase 30 anos foi vivida no espaço, quando minhas amigas e eu nos juntamos para produzir um show do RVIVR, embora ninguém soubesse ao certo o que era produzir um show. Contamos muito com a ajuda do Edmundo e da Andrea para isso. Conheci minhas melhores amigas lá. Comecei e terminei um namoro adolescente lá. Me descobri bissexual lá. Quando (e se) eu fizer 98 anos de idade, ainda me lembrarei do piso xadrez e do teto colorido.

Não só a minha memória tem muito de Matriz, mas também a memória de toda uma cidade. Tanto é que receberam o Diploma de Honra ao Mérito concedido pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, em 2014, por iniciativa do vereador Arnaldo Godoy (PT). “Edmundo e Andrea são muito importantes para a cena cultural de BH, desde os tempos do Calabouço, passando pelo Butecário e a história continua com a Matriz”, opina Roger Deff.

A foto mostra uma parede interna da casa matriz. A parede é azul e nela estão coladas diversas artes impressas em papel a4.

A pandemia e a (re)abertura como Casa Matriz

A história continua, mas diferente. O enfrentamento à Covid-19 obrigou diversos negócios a fecharem as portas, incluindo a Matriz. Sem que as contas parassem de chegar, Edmundo e Andrea, com a colaboração da fotógrafa e consultora Juliana Correa, transformaram a casa cultural no restaurante delivery Casa Mãe. Embora o restaurante se mantenha em atividade até os dias de hoje, a permanência no espaço se mostrou insustentável, mesmo com a ajuda de um financiamento coletivo. Depois de 21 anos de atividades, em outubro de 2021, o espaço anunciou seu fechamento definitivo no Terminal JK, com uma dívida de mais de cem mil reais.

“Todas as negociações com a imobiliária se esgotaram e, diante desse cenário catastrófico, provocado por um verme e um vírus, só nos resta uma saída: fechar as portas, antes que tudo exploda!”, publicou Edmundo nas redes sociais. O fato entristeceu a cidade inteira.

Cerca de três meses depois, o celular de Edmundo tocou, um número desconhecido chamava. Do outro lado da linha, o advogado Bernardo Coelho. Segundo Edmundo, “ele falou assim: você faz parte da minha vida, toquei no Butecário, frequentei a Matriz e foi na cena alternativa que me formei culturalmente. Hoje, sou advogado e quero te ajudar a sair desta situação [de dívida] sem você pagar tanto por ela. E não vou te cobrar nada por isso”. As tratativas deram certo e a dívida foi reduzida significativamente.

Depois de reformas na Casa do Jornalista, parte da sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais se transformou em Casa Matriz. Próximo ao palco, uma pintura reproduz o tradicional teto colorido pintado por Thiago Correia, lembrança que tanto marcou o antigo espaço no Terminal JK.

Edmundo conta que, sempre que pode, apoia artistas em que acredita, mesmo que não seja lucrativo para o espaço. “Eu ganho nuns eventos algum dinheiro e depois quero fazer outros que eu gosto mesmo, que vou ficar no prejuízo, mas que quero investir naquele trabalho. Minha vida toda foi assim”.

Do lado de fora, um painel pintado por Drin Côrtes, em grandes dimensões, retrata uma multidão de rostos que fizeram parte de toda essa trajetória – um percurso de quase quatro décadas, desde o surgimento do Calabouço à inauguração do atual espaço. Inspirada nos registros fotográficos da histórica Passeata dos Cem Mil contra a ditadura militar e também no conto “A morte dos girassóis”, de Caio Fernando Abreu, a obra do artista dialoga de forma pungente com a corrosão das instituições democráticas e a sombra do autoritarismo, que volta a pairar sobre o país – ao mesmo tempo em que exprime a força daqueles que, à sua maneira, foram e são capazes de sonhar e resistir coletivamente.

Edmundo conta que, sempre que pode, apoia artistas em que acredita, mesmo não sendo lucrativo para o espaço. “Eu ganho nuns eventos algum dinheiro e depois quero fazer outros que eu gosto mesmo, que vou ficar no prejuízo, mas que quero investir naquele trabalho. Minha vida toda foi assim”. Hoje, ele e Andrea equilibram as contas com a Casa Mãe, que abre dois dias por semana e ajuda a manter as atividades do casal.

A festa de (re)abertura da Casa Matriz ocorreu no fim de março e, desde então, o funcionamento vai de vento em popa. O mote do novo espaço não é tão novo assim, pois lembra os mesmos valores do Calabouço e do Butecário: “programação alternativa, democrática, aberta a todas as manifestações artísticas e culturais e sem concessões ao mero comercialismo”.

A foto mostra Edmundo e Andrea abraçados em frente à parede azul da Casa Matriz. Edmundo é um homem branco, com cabelos grisalhos, vestindo uma camisa xadrez por cima de uma blusa branca e calça preta. Andrea é uma mulher branca, de cabelos loiros e compridos, vestindo uma blusa preta de mangas longas e uma calça vermelha.
  • JESSICA DE ALMEIDA

    Jornalista e mestra em Ética Jornalística. Nasceu e cresceu no Tupi, zona Norte de BH, de onde partia para fazer a integração do 713 com o metrô na Estação São Gabriel. Hoje mora no Carlos Prates e é cicloativista no coletivo Terça das Manas.

  • LEO BRYAN

    Escreve sobre cultura e literatura. Tem um coração dividido entre os prédios antigos do Centro e as ruas do Colégio Batista, bairro onde cresceu e, depois de rodar um pouco, voltou a morar.

  • FLÁVIO CHARCHAR

    Artista audiovisual e fotográfico nascido e criado na região Noroeste de Belo Horizonte. O amor pelo cinema sempre existiu, mas foi a música que trouxe o primeiro contato com as lentes – sua eterna e generosa guia. É idealizador do @sofarsoundsbh.